terça-feira, 13 de agosto de 2013

Uma carta aberta à minha filha.

Uma carta aberta à minha filha.

(E uma exortação velada a pais cristãos e a jovens adultos cristãos em todos os lugares)

Querida L.Y.,

Em uma caixa em algum lugar na garagem há um filme de nós dois. Apesar de estar jogado e perdido, ele continua passando em minha memória. Eu estou te segurando. Você cabe perfeitamente em minhas mãos. Meu coração se encaixa perfeitamente entre seus dedos – por menor que eles sejam. Foi há muito tempo. É a personificação daquela velha metáfora que usamos para descrever pais e filhas: “Presos em seus braços” ou algo parecido. Não há dúvida, estou entrelaçado. Sempre estive. Silenciosamente, eu me abaixo e sussurro algo para você.  Fica difícil decifrar o que estou te dizendo nessa velha fita empoeirada. Mas eu sei exatamente o que eu disse: “Você sempre será essa criança aqui em minhas mãos. Nunca vou te abandonar nem te desamparar. Te amo”. Já faz quatorze anos, mas é como se fosse hoje.

Um dia, se Deus permitir, você saberá quão profundamente um pai ama seu filho. É a veia sem fim no coração de um pai. Mas você nunca saberá quão intensamente um pai ama uma filha. É difícil colocar em palavras. É uma mistura de força e suavidade que só existe nesse relacionamento. Um amor de pai paira como uma cidadela sobre o tesouro intocável da vida da sua filha. (É por isso que seu pai age como um suspeito atirador escondido à sua volta.) Uma filha cresce dentro de suas barreiras seguras. O amor de um pai pela sua filha é um preservador contra milhares de doenças tentando infectar a inocência da vida dela.

É de se espantar porque jovens são reduzidas às lágrimas quando elas olham para trás no filme de suas vidas e não conseguem ver a doçura de um pai? É profundamente lamentável… e desnecessário. Garotas precisam de pais. Negligência aqui é cruel. A pior coisa que um pai pode fazer às vezes é não fazer nada. Parece que eu aconselho a onipresente jovem com coração ferido toda semana. Ela é a jovem mulher perdida que busca valor próprio nas afeições de um rapaz – nunca tendo recebido isso do pai. A dor dela é profunda. A ternura é um poder sublime nas mãos de um pai. É impressionante ver o que o tempo investido mostrando amor aos oito anos faz a uma pequena garota quando ela tem vinte e oito. Ele constroi confiança como poucas coisas conseguem fazer. É uma fundação colocada dentro do coração.

Você não percebe completamente agora, mas um dia, em meio às dificuldades da vida, você verá o que eu tenho feito todos esses anos. Você verá o que eu sussurrei para você muitos anos atrás. Na escuridão da sua dor, você tocará o fundo e de repente sentirá uma fundação abaixo de você. Eu sei que você me ama. Sei que você me respeita mais do que qualquer outro homem nesse planeta. Mas eu não estive voltando seu coração para mim, tão quanto para o Meu Deus. Minha liderança em sua vida tem a intenção de te dar um pequeno vislumbre do incrível poder dEle sobre todas as coisas, incluindo você. Eu sei que o Meu Deus te sustentará.

Quando a hora chegar você sentirá uma firmeza que você nunca sentiu antes. Ali, naquele momento, o amor dEle será meu maior presente para você. Uma visão do poderoso Deus, que tenho diligentemente te mostrado conversa após conversar e carinho após carinho, aparecerá e te agarrará. Meu próprio amor, incompleto e imperfeito, agora fará sentido na infinita sombra dEle. Você se curvará calmamente sobre a sua vida e dirá: “Obrigado, papai. Deus é Grande. Ele nem me abandonou nem me desamparou”. Seu pai terreno ficará contente em ser ofuscado pelo seu Pai Celestial. Você não é minha. Você é dEle. Eu me alegrarei de dentro da fenda da grandeza dEle enquanto observo minha filha adorar com os joelhos que no passado eu colocava band-aids.

Oro para que meu cuidado por você revele nitidamente o amor do Nosso Salvador. Incondicional. Sacrificial. Paciente. Verdadeiro. Servil. Consistente. Presente. Oro para que meu sentimento sincero seja um contraste aos muitos enganos que se fazem passar por amor nesse mundo. Oro para que a visão de seu pai em adoração quebrantada por Cristo te dê a coragem para erguer o seu próprio coração em louvor diante da humanidade. Oro para que minha confissão transparente de pecado e fraqueza te incline a se refugiar na justiça de Cristo diante do seu pecado e fraqueza. Oro mais intensamente para que você não tenha meramente copiado a fé de seu pai, mas sinceramente tenha encontrado ao Senhor Jesus Cristo como o supremo objeto de sua própria fé.

Querida filha, não se acomode. Ame um homem que ame a Cristo mais do que a você – e a você mais do que ele mesmo. Seja atraída por ternura, humildade, abnegação, coerência e sacrifício. Busque aquele homem que carrega a marca da cruz do nosso Senhor na vida dele. Ame aquele homem que não vive no temor das suas emoções, mas no temor do seu Senhor. Não se case com um garoto… não importa quantos anos ele tenha. Não se apaixone pelo primeiro jovem que se aproxima de você e te dá atenção. Ao invés disso, siga aquele homem que se aproxima e se assemelha a graça incondicional do seu Senhor Jesus.

Lamento tanto pela condição geral da juventude masculina. Lameto por eles confundirem desejo sexual com amor. Entristeço-me por eles serem mais competentes em jogar do que em equilibrar o orçamento. Sofro por eles saberem mais sobre esportes do que doutrina. Desculpo-me por eles saberem melhor como manusear uma arma (o que é completamente respeitável em um sentido) do que eles sabem tratar uma mulher. Sei que piedade em um homem é difícil de achar. Mas ache-a. Senão, você vai passar sua vida criando o homem que você achava que tinha se casado. A igreja e essa cultura estão cheia de meninos disfarçados de homens. Deixe-os para lá.

O homem que você está procurando não é um menino. Ele é um servo. Ele se preocupa com suas necessidades acima das dele. Se sou pelo menos em parte o homem que afirmo ser, você deve olhar para o amor do seu pai pela sua mãe e saber o que estou descrevendo. Você deve ser capaz de reconhecer quando você o vir. Aquele homem que entregará a vida dele pela sua é o tipo de homem que você facilmente pode dar a sua vida por ele. O homem que se autossacrifica é fácil servir sacrificialmente.

Pela graça de Deus, eu pretendi apenas que meu próprio amor servisse como um limite máximo em sua alma. Nada, com exceção do amor de Cristo, será maior que o meu amor. Assim, quando aquele homem – por quem oro todos os dias – se aproximar e ultrapassar o amor do seu pai, você voluntariamente dará seu coração a ele. E eu (secretamente desejando atirar nele e enterrar seus restos em um lugar secreto) amorosamente darei meu tesouro a esse homem que derrubou a fortaleza do amor do seu pai com uma arma tão fina quanto um avental de servo.

Seu Pai.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A origem do ofício de diácono.

A origem do ofício de diácono.

A definição do ofício de diácono

O substantivo diácono procede da palavra grega diakonós. Esta palavra ocorre 29 vezes no Novo Testamento, podendo significar:[1]
a)servo Mt 20:26; 22:13; Mc 9:35
b)garçom Jo 2:5,9
c)ministro Rm 13:4
d)auxiliar 2 Co 6:4; Ef 6:21; Cl 1:23,25; 1 Tm 4:6
e)oficial Fp 1:1; 1 Tm 3:8,12

O lexicógrafo J.H. Thayer define esta palavra como “aquele que executa as ordens de outro como um servo, atendente, ou ministro.”[2] Noutro lugar ele nos fornece outra definição mais completa como sendo “aquele que em virtude do ofício designado pela igreja, auxilia aos pobres, recebendo e distribuindo o dinheiro, que para este fim é coletado.”[3] Todavia, esta definição segue a prática da Igreja em seus primeiros séculos. A estrutura da nossa denominação embora não negue a responsabilidade do diaconato de exercer a assistência social, não recomenda nem estimula o seu manuseio financeiro deixando este para o Conselho. A definição de Thayer demonstra alguma deficiência e limitação do ofício do diácono.

Notemos ainda que, segundo William D. Mounce o verbo grego diakonéwsignifica “atender, cuidar, servir Mt 8:15; Mc 1:31; Lc 4:39; [...] ministrar, ajudar, dar assistência ou suplicar pelo indispensável à vida, providenciar os meios para se viver Mt 4:11; Mt 27:55; Mc 1:13; Mc 15:41; Lc 8:3.”[4] Esta definição é preferível por mostrar-se mais satisfatória as necessidades da Igreja.

A origem dos diáconos no Novo Testamento

Encontramos a narrativa histórica da origem do diaconato em At 6:1-6. Alguns estudiosos, entretanto, negam que esta passagem se refira à origem do ofício, alegando o fato de não haver menção da palavra “diácono” no texto. Todavia, podemos crer que esta passagem seja a narrativa da instituição do diaconato levando em consideração os seguintes argumentos que Louis Berkhof apresenta:

1. O nome diakonoi que, antes do evento narrado em Atos 6, era sempre empregado no sentido geral de servo ou servidor, subseqüentemente começou a ser empregado como designativo daqueles que se dedicavam às obras de misericórdia e caridade, e, com o tempo, veio a ser usado exclusivamente neste sentido. A única razão que se pode atribuir a isto acha-se em Atos 6.
2. Os sete homens ali mencionados foram encarregados da tarefa de distribuir bem as dádivas trazidas para as agapae (festas de amor cristão), ministério que noutras partes é particularmente descrito pela palavra diakonia, At 11:29; m 12:7; 2 Co 8:4; 9:1,12-13; Ap 2:19.
3. Os requisitos para o ofício, como são mencionados em Atos 6, são muitos exigentes, e nesse aspecto, concordam com as exigências mencionadas em 1 Tm 3:8-10. (4) Muito pouco se pode dizer em favor da acariciada idéia de alguns críticos de que o diaconato só foi desenvolvido mais tarde, mais ou menos na época do aparecimento do ofício episcopal.[5]

A tradição cristã reconheceu nesta decisão apostólica a origem do diaconato:

1. Irineu de Lião (130-200 d.C.) em seu livro “Contra as Heresias” 1:26; 3:12; 4:15.
2. Cipriano (200-258 d.C.) em suas “Epístolas” 3:3.
3. Eusébio de Cesaréia (260-340 d.C.) declara em sua “História Eclesiástica” que ali “foram igualmente destacados pelos apóstolos, com oração e imposição de mãos, homens aprovados para o ofício de diáconos, para o serviço público”.[6]

Mesmo numa leitura artificial da passagem de At 6:1-6 é possível verificar um problema de omissão na “mesa das viúvas dos gentios”. Esta omissão certamente não era proposital, pois os apóstolos sendo apenas “os doze” não podiam suprir todos os novos convertidos no ministério de ensino da Palavra de Deus, e ao mesmo tempo “servindo as mesas”. Há pelo menos quatro motivos que podemos enumerar para a instituição do diaconato:

1. Para evitar a desordem nos relacionamentos da Igreja. Surgia o grave problema da murmuração.
2. Para evitar que houvesse partidos dentro da Igreja. A omissão às mesas das viúvas enfatizava as diferenças entre o grupo dos judeus helênicos e judeus palestinos.
3. Para evitar a injustiça na distribuição de alimentos e donativos aos necessitados.
4. Para que os mestres da Palavra sejam dedicados no ensino da mesma. É importante observarmos que os apóstolos não estavam rejeitando o “servir às mesas das viúvas”. John R. W. Stott faz uma importante contribuição ao entendimento deste assunto ao dizer que “não há aqui nenhuma sugestão de que os apóstolos considerassem a obra social inferior à obra pastoral, ou de que a achassem pouco digna para eles. Era apenas uma questão de chamado. Eles não poderiam ser desviados de sua tarefa prioritária”.[7]

Charles R. Erdman sugere algumas ideias sobre a necessidade do diaconato na Igreja Cristã. Vejamos que:

(1) É dever óbvio da Igreja, em toda parte, provar às necessidades dos seus membros.
(2) Essa provisão exige clarividência e cautela, para que os que mais precisam não sejam omitidos.
(3) A administração de tais socorros precisa incluir contato e simpatia pessoais. Não é coisa que se deva fazer mecanicamente, ou porque seja praxe. São socorros que devem resultar em conforto espiritual e, se possível, devem levar as pessoas a ficar em condições de poder dispensá-los mais adiante.
(4) Esse trabalho requer a designação de oficiais especializados. “O ministro” deve ser desembaraçado das particularidades que cercam o levantamento e a aplicação de dinheiro entre os membros de sua Igreja.
(5) Ao ministro se deve permitir que se empregue seu tempo no estudo, na prédica e na oração.
(6) O socorro dos pobres, ou seja a assistência social, de qualquer que seja a natureza, jamais deve tomar o lugar do esforço evangelístico.
(7) Na Igreja todos os seus oficiais são “ministros” ou “servos”, na verdadeira acepção do termo; não são dominadores. E qualquer que seja a forma do serviço, devem procurar fazer dele um meio de testemunhar de Cristo, o que aliás vem sugerido nos episódios de Estevão e Filipe, dois diáconos cujo testemunho constitui uma parte significativa da história que se segue imediatamente.[8]

Notas:
[1] F.W. Gingrich & F.W. Danker, Léxico do N.T. Grego/Português (São Paulo, Ed. Vida Nova, 1993), p. 53
[2] J.H. Thayer, Thayer’s Greek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids, Associeted Publishers and Authors Inc., 1889), p. 138
[3] Ibidem.
[4] William D. Mounce, The Analytical Lexicon to the Greek New Testament (Grand Rapids, Zondervam Publishing House, 1992), p. 138
[5] Louis Berkhof, Teologia Sistemática (Campinas, LPC, 1990), p. 591.
[6] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica (Rio de Janeiro, CPAD, 1999), Livro 2. Cap. 1, p. 47
[7] John W.R. Stott, A Mensagem de Atos (São Paulo, Ed. ABU, 1994), p. 134
[8] Charles R. Erdman, Atos dos Apóstolos (São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1960), pp. 58-59

A quem honra, honra: honremos nossos pais.

A quem honra, honra: honremos nossos pais.

Introdução: O tesouro paterno
“Não devem os filhos entesourar1 para os pais, mas os pais, para os filhos”(2Co 12.14). Paulo entendia que como pai na fé dos crentes coríntios (1Co 4.14-15; 2Co 6.13/1Co 3.6,10; 9.1)2 deveria alimentá-los e fortalecê-los em sua fé. Esta analogia fala-nos, portanto, da responsabilidade do pastor em buscar o suprimento necessário, por intermédio da Palavra, para o progresso espiritual de seu rebanho. Por isso é que “a infidelidade ou negligência de um pastor é fatal à Igreja”.3

Curiosamente a nossa palavra patrimônio (patrimonium) está associada etimologicamente à palavra pai. Recebemos nosso patrimônio de nossos pais. De fato, de modo especial na infância, com raríssimas exceções, dificilmente podemos contribuir para o aumento dos bens de nossos pais; nós apenas os recebemos. No futuro, possivelmente nossos filhos receberão os nossos bens, muito ou pouco; contudo, certamente entesourados por nós e pelos nossos pais. Salomão, inspirado por Deus, escrevera: “A casa e os bens vêm como herança dos pais....” (Pv 19.14a).

1. Com os nossos Pais
O designativo “Pais” foi aplicado aos bispos da Igreja no segundo século. A obra anônima, O Martírio de Policarpo, escrita por uma testemunha ocular do ocorrido, por volta do ano 155 AD, relata que “a turba pagã e judia desejando matar Policarpo, por ser cristão, vociferou: ‘Eis o doutor da Ásia, o pai dos cristãos, o destruidor dos deuses, que com seu ensino, afasta os homens dos sacrifícios e da adoração’.”.4 (Destaque meu). Isto indica que na época era comum referir-se aos bispos cristãos como “Pais” (no sentido acima descrito, ti-nha uma conotação pejorativa, como “pai de uma heresia” ou “pai dos hereges”). O emprego dessa expressão disseminou-se de tal forma que, no quarto século, todos os pastores e mestres que haviam participado do Concílio de Nicéia (325) eram chamados de “Pais da Igreja”.5

Entre os cristãos, a expressão aplicada aos bispos assume uma conotação carinhosa, indicando também a sua responsabilidade: “O conceito de ‘Padre da Igreja’ evidencia um aspecto da rica figura paterna: o bispo como autêntico transmissor e garante (sic) da verdadeira fé, aquele que vela pela sucessão ininterrupta da fé desde os apóstolos bem como pela continuidade e unidade da fé na comunhão com a igreja. Ele é o fiel mestre da fé, ao qual se pode recorrer nas dúvidas da fé. Essa autoridade na verdade não torna o Padre da Igreja individualmente inerrante em todos os pormenores – ele deve se ater à Sagrada Escritura e à regula fidei da igreja universal – mas, em sintonia com elas, ele é testemunha autêntica da fé e da doutrina da Igreja”.6

Etienne Gilson (1884-1978), seguindo uma compreensão clássica, diz que um “Pai” deveria apresentar quatro características: “ortodoxia doutrinal, santidade de vida, aprovação da Igreja, relativa Antiguidade (até fins do século III aproximadamente)”.7

Curiosamente, na única carta escrita por Calvino a Lutero (25/01/1545), a qual este, ao que parece, jamais recebeu, Calvino se dirige a Lutero como “meu respeitadíssimo pai”, “respeitadíssimo pai no Senhor” e “meu pai sempre honorável”.8 

2. Nós e os nossos Pais 
Os documentos da Igreja que recebemos não são infalíveis (nem mesmo naquilo que é consensual), nem ja-mais pretenderam isso; contudo, são os tesouroshistóricos e teológicos que nos foram legados. A sua auto-ridade é relativa.9 No entanto, a Igreja não pode sobreviver sem a consciência de seu passado, de suas lutas, dificuldades, fracassos e, certamente, por graça, de suas vitórias. Esta consciência deve gerar em nós um es-pírito de gratidão, humildade e desafio diante da magnitude da Revelação de Deus.

Muitas vezes em nossas lutas presentes somos terrivelmente dominados pela sensação delas serem únicas ou as mais violentas. A história de nossos pais pode ser fonte de grande estímulo e consolo para nós. Por meio da história de sua vida e testemunho podemos descobrir – às vezes para vergonha nossa –, o quanto nossos irmãos do passado lutaram bravamente pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos e da qual so-mos herdeiros. O nosso presente tende a assumir dentro de alguns contextos o caráter de onipresença, como se fosse um presente contínuo,10 assim, pensamos estar sozinhos em nossa empreitada, nos esquecendo da ação abençoadora e preservadora de Deus ao longo da história que hoje, cabe ser escrita por nós. Crer no Deus Triúno é uma declaração de que não estamos sozinhos; o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão conosco; Deus veio a nós criando a nossa fé.11 E mais: todos estamos irmanados pela mesma fé ao longo da história. O Deus em quem cremos é o meu Deus e o Deus de muitíssimos irmãos que ao longo da história têm viven-ciado e testemunhado a mesma fé.

Veith escreve com propriedade:
Os cristãos modernos são os herdeiros de uma grande tradição intelectual cristã. Essa tradição de pensamento ativo e solução prática de problemas é uma aliada vital dos cristãos que lutam contra as tendências intelectuais do mundo contemporâneo. O uso das perspectivas do passado pode fornecer uma perspectiva valiosa sobre as questões atuais. Podemos, assim, livrar-nos da tirania do presente, a suposição de que a maneira que as pessoas pensam hoje é o único modo possível de pensar.12


Na Reforma Protestante do século XVI, o uso de Catecismos e Confissões, foi de grande valia para a educa-ção dos crentes, partindo sempre do princípio da necessidade da fé explícita, de que todos os cristãos devem conhecer a sua fé, sabendo no que creem e porque creem. No Brasil, quando o presbiterianismo foi iniciado (1859), o ensino dos símbolos de Westminster teve papel decisivo na consolidação de sua identidade como Igreja Reformada. Hoje, em nome de um suposto “pluralismo” pretensamente acadêmico, o que podemos perceber, é um enfraquecimento desta ênfase, mesmo nos Seminários ditos Reformados, acarretando um desfiguramento doutrinário por parte de muitos de seus pastores e consequentemente, dos membros da igre-ja. Por trás de todo pluralismo há o mito da neutralidade acadêmica,13 como se fosse possível alguém ensinar sem seus pressupostos que conduzem a sua perspectiva da realidade. A nossa percepção e ação fundamen-tam-se em nossos pressupostos14 os quais são reforçados, transformados, lapidados ou abandonados em prol de outros, conforme a nossa percepção dos “fatos”. Os pressupostos se constituem na janela (quadro de refe-rência) por meio da qual vejo a realidade; o difícil é identificar a nossa janela, ainda que sem ela nada en-xerguemos.15 Assim, falar sobre a nossa cosmovisão, além de ser difícil verbalizá-la, é paradoxalmente des-necessário. Parece que há um pacto involuntário de silêncio o qual aponta para um suposto conhecimento comum: todos sabemos a nossa cosmovisão. Deste modo, só falamos, se falamos e quando falamos de nossa cosmovisão, é para os outros, os estranhos, não iniciados em nossa forma de pensar.16 

Tenho observado que se você sustentar uma posição teológica “histórica”, independentemente de sua tradi-ção e de sua argumentação, ela tenderá a ser considerada radical e limitada. Contudo, se você simplesmente se limitar a fazer críticas às tradições teológicas, valendo-se de clichês repetidos e mesmo já abandonados, sem propor nenhuma alternativa bíblica e historicamente viáveis, você será considerado um intelectual pro-fundo, com grande argúcia e capacidade crítica. Talvez até ouça a seu respeito: “aquele cara é meio liberal, mas, é uma capacidade; ele nos faz pensar...”. Esta é uma das falácias do chamado “academicismo” moder-no. 

A epistemologia antecede à lógica e esta, por mais coerente que seja, se partir de uma premissa equivocada nos conduzirá a conclusões erradas e, portanto, a uma ética com fundamentos duvidosos e inconsistentes. Portanto, a questão epistemológica antecede à práxis e em grande parte a determina.

Contudo, como nos aprofundar no campo intelectual se abandonamos as questões epistemológicas? As pala-vras de Machen (1881-1937) no início do século XX não se tornam ainda mais eloquentes nos dias de hoje?: “A igreja está hoje perecendo por falta de pensamento, não por excesso do mesmo”.17 

No início do século XIX, ouvia-se o clamor de determinados grupos independentes nos Estados Unidos, que diziam o seguinte: “Nenhum credo senão a Bíblia”.18 Atitude similar ainda hoje é observada em grupos ou pessoas, dentro de denominações chamadas históricas, que manifestam de forma clara o seu desprezo para com os Credos da Igreja ou, de modo velado, não se interessando por eles, como se os Credos fossem apenas uma série de pronunciamentos antiquados, sem nenhuma relevância para a igreja contemporânea ou como se eles pretendessem se constituir numa declaração de fé que rivalizasse com as Escrituras Sagradas, devendo, portanto, ser rejeitados por não estarem de acordo com o espírito da Reforma que, corretamente, enfatizou “Sola Scriptura”.

Quando tratamos deste tema, as questões que logo vêm à baila são: estariam tais grupos ou pessoas errados? Por outro lado, as denominações que têm as suas Confissões de Fé estariam incorrendo em erros? Neste caso, os Credos e as Confissões não estariam sendo colocados no mesmo nível das Escrituras, contrariando, assim, um dos princípios da Reforma, que diz: “Sola Scriptura”?

Consideramos oportuno realçar preliminarmente, que “Lutero e os reformadores não queriam dizer por Sola Scriptura que a Bíblia é a única autoridade da igreja. Pelo contrário, queriam dizer que a Bíblia é a única au-toridade infalível dentro da Igreja”.19 A autoridade dos Credos era indiscutivelmente considerada pelos re-formadores – tendo inclusive Lutero e Calvino elaborado Catecismos para a Igreja –; contudo, somente as Escrituras são incondicionalmente autoritativas. Um juízo adequado envolve a justa medida; portanto, nem subestimar, nem superestimar. Por isso, os documentos da Igreja devem ser lidos com reverência e proveito dentro dos limites de sua riqueza e falibilidade.20

Considerações Finais
“Deus permitiu aos heréticos fustigarem sua Igreja exatamente para despertar a mente pelo conflito e para levá-la a buscar a Palavra de Deus”, afirmou Abraham Kuyper.21 

Ao refletir sobre este assunto, ainda que introdutoriamente, devemos ter um espírito de gratidão, tendo como desafio nos apropriar das contribuições de nossos pais (tradição) e, em submissão ao mesmo Espírito, par-tindo das Escrituras, única autoridade infalível, e deste patrimônio riquíssimo buscar respostas para as inda-gações e questionamentos contemporâneos.

“Ouvimos, ó Deus, com os nossos próprios ouvidos: Nossos pais nos têm contado....” (Sl 44.1). Como bons filhos devemos atender ao Mandamento de Deus honrando os nossos Pais.
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Notas:
1 Mt 6.19,20; Lc 12.21; Rm 2.5; 1Co 16.2; 2Co 12.14; Tg 5.3; 2Pe 3.7. 
2 Irineu (c. 120-202) usa a mesma expressão, dizendo: “Quem foi instruído por outro por meio da palavra é chamado filho de quem o instruiu e este pai daquele” (Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, IV.41.2. p. 513). Do mesmo modo Agostinho (Veja-se: Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1997, Vol. 1, (Sl 44), p. 768). 
3 João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.16), p. 126.
4 O Martírio de Policarpo, XII.2. In: H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE., 1967, p. 39. Para um estudo crítico deste documento, inclusive no que se refere à data do martírio, veja-se: J.B. Lightfoot, The Apostolic Fathers, 2ª ed. Peabody Massachusetts: Hendrickson Publishers. © 1989, Vol. I, p. 646-722. Para uma visão abreviada desta discussão, ver: J.B. Lightfoot, The Apostolic Fathers, 10ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker, 1978, p. 103-106.
5 Agostinho (354-430) parece ter sido o primeiro a ampliar o conceito, incluindo São Jerônimo, um presbítero, entre os Pais (Cf. B. Altaner; A. Stuiber, Patrologia, 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 19). Seguindo o exemplo de Agostinho, Vicente de Lérins em 434, aplicou o termo Pai a diversos escritores eclesiásticos sem nenhuma distinção hierárquica. (Ver: Vicente de Lérins, Commonitorium, 31 e 33. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (reprinted). (Second Series), 1978, Vol. XI, p. 155 e 156.  
6 Hubertus R. Drobner, Manual de Patrologia, Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 11-12.
7 E. Gilson, A Filosofia na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1995, “Introdução”, p. XXI. Do mesmo modo: Hubertus R. Drobner, Manual de Patrologia, p. 12; B. Altaner; A. Stuiber, Patrologia, p. 20.
8 João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 53 e 54.
9 Vejam-se: Confissão Gaulesa, Cap. V; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, Vol. 1, p. 228-234 (com valiosos documentos); Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 13.
10 Dentro de outro contexto e abordagem, o historiador britânico contemporâneo, Eric Hobsbawn (1917-), num de seus livros, analisando a nossa presente era, diz que “quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem” (A Era dos Extremos, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 13).
11 Veja-se: Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 16-17.
12 Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 97.
13 A “neutralidade” é impossível tal qual a “objetividade” completa, no entanto, deve ser buscada. Gilberto Freyre expressou bem isto, ao dizer: "A perfeição objetiva nas Ciências do homem ou nos Estudos Sociais talvez não exista. Mas o afã de objetividade pode existir. É a marca do historiador intelectualmente honesto. E sua ausência, o sinal do intelectualismo desonesto" (Gilberto Freyre, na Apresentação da obra de Davi Gueiros Vieira, O Protestantismo, A Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 9). 
14 “As pressuposições ainda determinam nossos destinos, mesmo a despeito de alguma inconsistência no caminho” (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: Redenção para a cultura pós-moderna, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 15).
15 “Seria atenuar os fatos dizer que a cosmovisão ou visão de mundo é um tópico importante. Diria que compreender como são formadas as cosmovisões e como guiam ou limitam o pensamento é o passo essencial para entender tudo o mais. Compreender isso é algo como tentar ver o cristalino do próprio olho. Em geral, não vemos nossa própria cosmovisão, mas vemos tudo olhando por ela. Em outras palavras, é a janela pela qual percebemos o mundo e determinamos, quase sempre subconscientemente, o que é real e importante, ou irreal e sem importância” (Phillip E. Johnson no Prefácio à obra de Nancy Pearcey, A Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de Seu Cativeiro Cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2006, p. 11).
16 Veja-se: James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 21-22.
17 J.G. Machen, Cristianismo y Cultura, Barcelona: Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1974, p. 19.
18 Cf. M.A. Noll, Confissões de Fé: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, Vol. I, p. 340. Este tipo de declaração também tornou-se comum pelo menos, no início do século XX, quando alguns fundamentalistas além de repetirem a afirmação supra, também bradavam: “Nenhum ‘CREDO', senão Cristo” (Vejam-se:. R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo: La Santa Iglesia, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1985, p. 100; L. Berkhof,Introduccion a la Teologia Sistematica, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., c. 1973, p. 22; Gordon H. Clark, Em Defesa da Teologia, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 41). Entre o final dos anos 50 e início dos anos 60, Lloyd-Jones disse com tristeza: “No presente século há marcante aversão por credos, confissões e por definições precisas. O cristianismo tornou-se um vago e indefinido espírito de boa vontade e filantropia” (David M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: PES, 1994, p. 213).
19 R. C. Sproul, Sola Scriptura: Crucial ao Evangelicalismo: In: J.M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 122. 
20 Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, Vol. 1, p. 234.
21 Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 57.
 

Humor apologético?

Humor apologético?

Vivemos numa época tão trivial que muitos fazem humor e chamam isso de apologética. Veja como Paulo via a condição da igreja nas palavras de Spurgeon, veja  como era o estado do seu espírito em relação a isso. Spugeon diz:

"Nossas Igrejas, eu lhes digo para sua vergonha, toleram em seu seio membros que não têm nenhum direito a este título; membros que estariam bem melhor se postos em uma sala de festim, ou em qualquer outro lugar de dissolução e loucura, mas que jamais deveriam molhar os lábios no cálice sacramental ou comer o pão místico, emblemas dos sofrimentos de nosso Senhor. Sim, em vão procurariam dissimular que há vários entre nós – (e se tu voltasses à vida, ó Paulo. Quanto não te sentirias apressado em nos dizer, e quantas lágrimas amargas não derramarias ao nos dizer!...) – que são inimigos da cruz de Cristo, e isto porque o deus deles é o ventre, porque eles dirigem suas afeições às coisas da terra, e sua conduta está em completo desacordo com a santa lei de Deus.

Eu me proponho, meus irmãos, a procurar com vocês a causa da dor extraordinária do Apóstolo. Eu digo: dor extraordinária, porque o homem que meu texto apresenta como derramando lágrimas, não era, vocês sabem, um desses espíritos fracos, de sensibilidade doentia e sempre perto de se emocionar. Eu não li em nenhuma parte nas Escrituras que o Apóstolo chorasse sob o golpe da perseguição. Quando, segundo a expressão do salmista, se traçavam sulcos sobre seu dorso, quando os soldados romanos o lancetavam com suas varas, não sei de nenhuma lágrima que tenha escapado de seus olhos. Foi ele jogado na prisão? Ele cantava e não gemia. Mas, se jamais Paulo chorou por causa dos sofrimentos aos quais se expôs por amor a Cristo, ele chorou, nós vimos, ao escrever aos Filipenses. A causa de suas lágrimas era tripla: ele chorava, primeiramente, por causa DO PECADO de alguns membros da Igreja; em segundo lugar, por causa DOS EFEITOS DESAGRADÁVEIS DA CONDUTA DELES, e enfim, por causa do DESTINO que lhes esperava."

“Pois muitos andam entre nós, dos quais, repetidas vezes eu vos dizia e, agora, vos digo, até chorando, que são inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a perdição, o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia, visto que só se preocupam com as coisas terrenas”. - (Fil. 3:18,19).